Quando voltei de uma viagem à Fernando de Noronha. Foram 5 dias dedicados a escutar a minha alma, incluindo aí: trilhas, mergulhos, descanso em praias paradisíacas e muita rede, claro! Levei como companhia o livro de Thomas Merton – Homem algum é uma ilha. Gosto de enxergar essas viagens, não importa para onde exatamente, como retiros espirituais. Para mim são isso: alimentos para o meu espírito.
Como habitante de uma grande metrópole, andava agitada, ansiosa… Em resumo, fora do meu eixo. Costumo brincar que a cada seis meses preciso tirar uns dias para reequilibrar o meu ser, recarregar as baterias – nada melhor do que viajar para um lugar diferente. Desde que fiz o Caminho de Santiago de Compostela, aprendi a ouvir o meu ritmo e descobri que ele não bate no mesmo ritmo da cidade grande, mas também não consegue ficar longe da sua batida. É mais ou menos como se fosse a paradinha dos ritmistas de bateria de escola de samba. O silêncio que faz toda a diferença.
Thomas Merton foi o “guia” para o meu retiro. Lendo ele era como se tivesse revendo a minha vida, tendo a oportunidade de ter toda uma explicação teológica para escolhas que fiz na busca pelo autoconhecimento baseadas puramente numa fome de não sei o quê. Agora sei: segundo o autor, quanto mais nos conhecemos, mais próximos estamos de Deus, uma vez que mais verdadeiros seremos em relação a nossa alma e consequentemente à vontade divina. Uma paz e uma alegria brota de dentro para fora. Um pensamento tão simples, mas tão poderoso! Quantas vezes vivemos ao inverso – tentando nos esconder de nós mesmos, seja por medo de enfrentar os obstáculos, seja para tentar se enquadrar na projeção de terceiros, ou simplesmente nos deixamos levar. Mas a Vida é um desafio constante, cheia de surpresas, altos e baixos e nos demanda vontade e muita garra para aproveitá-la, sem desperdiçá-la. Não vivê-la em todos os seus graus e momentos, é estar anestesiado em relação a própria vida – “Uma vida sem problemas pode, literalmente, ser mais desesperada, do que outra inclinada ao desespero”, isso porque para Merton “É melhor encontrar Deus no limiar do desespero do que arriscar a salvação numa complacência que jamais sentiu a necessidade do perdão”. Concordo em número, gênero e grau. Particularmente, desconfio daquelas pessoas que são eternamente equilibradas nos seus sentimentos. Tenho a impressão que na verdade elas não estão sentindo nada, por isso, não se importam e nada faz a menor diferença. Essas me parecem que não querem problemas, e como ele diz – problemas dão o gostinho da vida. Viver é ser parcial, ser apaixonado, é fazer escolhas e abandonar opções. É sentir felicidade ou tristeza, mas sempre, ter o coração batendo. Tem uma música do grande Arnaldo Antunes que fala exatamente isso – “Socorro!/ Alguém me dê um coração/ que esse já não bate nem apanha./Por favor!/ Uma emoção pequena qualquer coisa./ Qualquer coisa que se sinta./ Tem tantos sentimentos,/ deve ter algum que sirva.”
Quando disse que vi a minha vida no texto de Thomas Merton é porque passei por muitos dos estágios, e ainda estou buscando tantos outros. Tive a minha fase de me deixar levar.
Acreditava que se seguisse na cartilha que tinha me sido dada, a minha vida seguiria o curso esperado, sem sobressaltos ou grande problemas. Não me sentia inteiramente confortável, mas não dei muita bola para isso. Não sabia que estava abrindo mão de aproveitar inteiramente o presente que Deus tinha me dado. Ainda não tinha tido a real necessidade de ir ao encontro da misericórdia de Deus, e assim o meu relacionamento com Ele, era digamos … formal. Nós nos frequentávamos, éramos amigos, mas não tinha uma entrega viva e incondicional da minha parte.
Era como muitas amizades que temos a nossa volta: amigos que dividem a mesma roda de chopp por anos, mas que não se permitem dividir uma intimidade maior. A conversa sempre tangencia a intimidade – ela está ali, mas não de fato. Comigo e Deus, era assim e olha que Ele até me curou de um problema físico no coração, mas mesmo assim, eu mantinha a minha reserva. Essa fase deu lugar a decepção e a questionamentos intensos. Depois de 7 anos de casamento me vi separada e sem chão. Tudo que tinha feito até então, era o que acreditava ser certo, ser esperado de mim, e não tinha dado resultado (o esperado, pelo menos). Foi aí, que encontrei a misericórdia de Deus – “Somente o homem que teve que enfrentar o desespero é realmente convencido de que precisa da misericórdia.”.
Lembro-me das conversas íntimas e diretas que tive com Deus ao passear com o meu labrador todos os dias nessa época. Essa pequena rotina, passear com o cachorro, o que para muitos é uma chateação para mim era uma oportunidade de desabafar com Deus. Nessas conversas pela primeira vez assumi que estava totalmente perdida e esperei, cegamente, em Deus para mostrar o caminho. Lembro-me de dizer sempre que eu não entendia e não aceitava muito bem aquilo estar acontecendo comigo, que eu tinha feito a minha parte, mas tinha certeza que se estava acontecendo era porque algo muito melhor estava a minha espera. Era uma certeza que vinha de dentro, uma certeza sem sombra de dúvida na misericórdia de Deus. Ao longo do processo, tudo era mais uma tarefa a ser cumprida, cortada da lista de obrigações, mas em momento algum perdi a esperança de que Deus tinha um plano para mim, muito melhor do que o meu. Agora sei que “em esperança já somos senhores de nós mesmos e de todas as coisas porque em esperança já as temos, não tais quais elas são em si mesmas, mas tais quais são em Cristo: cheias de promessas”. O desânimo mais a esperança me empurraram para sair do caminho aberto por outros e buscar a minha própria trilha. E não é que Deus tinha um manancial de bênçãos, como diz Dom Cipriano? Ao longo do caminho cheguei a fonte, mas precisei sair de dentro de mim para ir ao encontro do outro, sem disfarces, para aí sim voltar a mim mesma – homem algum é uma ilha.
Essa busca não foi nada fácil nem rápida, muito pelo contrário. Foi dolorida e controversa, mas valeu cada etapa. Abracei cada momento e hoje recolho a recompensa dessa aventura – me sinto confortável na minha própria pele, o que me permite ser eu verdadeiramente, e assim construir uma relação verdadeira com Deus.
Merton abre o livro falando que todo homem procura a salvação. E por salvação ele “quer dizer, em primeiro lugar, o pleno descobrimento de quem é, de fato, ele mesmo … (A salvação) Ela é uma realidade objetiva e mística – o encontro de nós mesmo em Cristo, no Espírito.”
Tenho a impressão hoje, que depois de mergulhar a fundo para descobrir quem sou, descobri muito mais que a mim mesmo. Descobri Deus em mim, apesar da minha pequenez ou talvez, por causa dela – “Não posso descobrir Deus em mim nem a mim em Deus, se não tenho a coragem de enfrentar-me exatamente como sou, com todas as minhas limitações, e de aceitar os outros como são, com todas as suas limitações. A solução religiosa não é religiosa, se não é plenamente real. Evasão é resposta da superstição.”
Claro, que a busca não terminou … ainda tem muita terra a ser desbravada, mas agora é bem mais fácil, ou melhor, é muito mais divertido. Estou na fase apaixonada pela vida, de bem com o mundo e espero que essa dure o tempo suficiente da minha vida!
Para quem estiver em dúvida se vale a pena ou não abrir um novo caminho, Thomas Merton é uma boa leitura, reconfortante e ao mesmo tempo instigante.