Ombro a ombro. Seguindo em frente, sempre. Uma cotovelada aqui, outra acolá. De repente todos mais exprimidos – se isso é possível, para dar passagem – aberta a força, pela equipe de paramédicos carregando uma mulher nos braços. Mal eles passam, o buraco aberto por eles é mais do que rapidamente ocupado. A manada, ou melhor, as pessoas, continuam sua saga para avançar. Alguns rebeldes resolvem andar na contra-mão, atrapalhando o já confuso percurso. Os nervos estão a flor da pele. Inspira e expira. 1,2,3. Inspira e expira. Olhando a minha volta não posso acreditar que estou presa no meio de uma multidão de mais de um milhão de pessoas com o mesmo objetivo – ver alguma coisa – no telão, da canonização de dois papas do século passado que marcaram não só a Igreja, como o mundo. Santos que todos ali conviveram na mesma época que um deles, pelo menos.
A Igreja precisa de Santos. Eles são o nosso link com Deus. Não apenas nossos intercessores, mas o link real e concreto entre o humano e o divino. Eles são como nós, enfrentando todas as dificuldades humanas para viver o evangelho, mas mesmo assim eles conseguem. Eles superam os obstáculos e transformam vidas. Por isso são santos. Não apenas os milagres documentados pós morte.
A história da Igreja nos presenteou com muitos santos. Tem para todos os gostos e estilos, mas nada se compara a um calouro. Ainda mais se dividimos com eles uma época, histórias em comum. Os novatos da turma são os papas João XXIII e João Paulo II. O último definitivamente o queridinho. A Polônia veio quase toda prestigiar seu filho querido e tomou as ruas com bandeiras e faixas. Os jovens responderam com presença maciça na Praça de São Pedro ao chamado que ele fez na primeira Jornada da Juventude ainda lá em 1985, em Roma. João Paulo II foi o primeiro papa de quem me lembro. Lembro-me de ir ao escritório da minha mãe no Centro da Cidade para ver ele passar e, jogar papel picado da janela na sua primeira viagem ao Brasil. Na segunda não estava no Brasil. Ele foi o papa que soube usar do seu carisma pessoal para trazer os jovens de volta a Igreja, mas ao mesmo tempo não deu continuidade as ações do Concílio do Vaticano II, obra genial do agora santo João XXIII. Prova viva de que não é preciso muito tempo para fazer grandes mudanças. Em quatro anos de papado, revolucionou como nos relacionamos com Deus. Estreitou o relacionamento entre o humano e o divino. São João Paulo II e São João XXIII abriram a pouco a sua agenda de pedidos (aproveitem porque a fila ainda não é extensa) e eu já tenho o meu escolhido – João XXIII.
Sempre gostei da maneira como nós brasileiros tratamos os santos. Eles são amigos, íntimos. A quem tratamos pelo primeiro nome, e algumas vezes até por algum apelido carinhoso. Não existe cerimônia. Pedimos, agradecemos e claro, reclamamos e puxamos a orelha se não estão nos ouvindo. Não sei de outro povo que tenha essa mesma dinâmica. Mesmo em Roma, terra da Igreja, os santos são tratados com uma certa formalidade. Tenho carinho por muitos, mas não tenho nenhum que seja o meu queridinho, assim como a minha mãe tem Sta Teresinha. Elas são melhores amigas desde criancinha. No meu tempo de colégio e sofrimento com provas de matemática, minha avó me apresentou São Tomás de Villanueva, doutor da Igreja. Pensei logo: “É esse! Doutor da Igreja, deve saber tudo”. Rezava e fazia muitas promessas até que um dia conversando, ou melhor pedindo para ele rezar para eu passar, padre Antonio, da Igreja Santa Mônica, fez uma pergunta que me pegou de surpresa: ‘Você estudou?’ – ‘Mas como assim, eu tô rezando!’ – ‘Minha filha, ele é santo mas se você não estudar não dá para ele fazer a prova por você’. Confesso que fiquei um pouco decepcionada com S. Tomás, mas no final das contas, ele sempre passou de ano. Como a minha animosidade com os números, por parte deles (!), ia crescendo, fui recorrendo a alguns santos mais carimbados em causas perdidas como São Judas e Santa Rita. Mas a concorrência dos pedidos é gigantesca. Também tive minha queda por São Jorge e São Pedro, quando namorei um George e casei com um Pedro, mas em algum momento lá atrás, deixei um pouco de lado os meus santos e me dediquei a estreitar o relacionamento direto com Jesus e Maria. A mãe sempre me parece a melhor interface – tanto no céu quanto na Terra. Mas adoro um santo. Não resisto à São Tiago. Desde que fiz o Caminho de Compostela me apaixonei por ele e por São Paulo.
Falando em São Paulo, nessa viagem tive a oportunidade de conhecer a Basílica de São Paulo Fora dos Muros, onde estão os restos mortais de Paulo de Tarso. Humano e divino interligados num só lugar. Amo as grandes catedrais. Elas nos colocam nos nossos lugares – seres pequenos diante da magnitude do mundo, sem oprimir. Ao contrário. Nos dão espaço para silenciar a balbúrdia do mundo lá fora e conectarmos com o mundo divino. Entendemos sem precisar de palavras a importância do trabalho em equipe, do trabalho bem feito, para além da preocupação do hoje e amanhã, mas para daqui a 10, 20 ou 100 anos. Catedrais resistem as intempéries do tempo e são guardiães do conhecimento humano para gerações futuras com suas técnicas de construção e mecenato para artes. As grandes catedrais são obras de amor e fé. No homem e em Deus. “Eu não gostaria de viver num mundo sem catedrais. Eu preciso das suas belezas e grandezas. Eu preciso delas contra a vulgaridade do mundo” (discurso de formatura do personagem ateu no livro Um trem para Lisboa, de Mercier Pascal). Infelizmente, alguns arquitetos modernos resolveram subtrair a questão divina nas construções de igrejas e catedrais modernas. O importante para eles é o prédio. A arquitetura. Podem até ser bonitos, mas são vazios. Sem alma. Falta neles o principal – o elo entre o homem e Deus. A Basílica de São Paulo tem uma nave central de quase 132 metros por 65 metros de largura, ladeada por colunas que por sua vez, tem corredores menores nas laterais. São 5 naves com um pé direito de 33 metros. Todo esse espaço sem um banco ou mobiliário. Vazio? Não. Arte e silêncio. Humano e Divino juntos, e entrelaçados. Como não se emocionar e conversar com Deus?
A Igreja precisa das grandes catedrais, assim como precisa de santos. Santos com histórias com as quais nos reconhecemos, como João XXIII e João Paulo II. Catedrais e santos não são simples intermediários ou desperdício de riquezas que deveriam ser investidas em outros lugares. Eles fazem parte da alma da Igreja. Eles tem a árdua tarefa de fazer a ligação entre os dois mundos – terreno e divino. Eu preciso de catedrais e santos contra a vulgaridade do mundo.