Conversas que tive comigo

Hoje me vi nas mãos com o livro de Nelson Mandela – Conversas que tive comigo. Acredito que são os livros que nos escolhem e não o inverso. Era como um imã me chamando. Cedi à tentação, comecei a ler na livraria mesmo e logo vi que ia ser uma viagem marcante. Isso, só com o prefácio de Barack Obama, imagina durante os anos de luta e prisão!

Ao ler as palavras de Obama sobre Mandela, o homem, e não o ídolo, várias memórias me vieram a cabeça. Tinha quinze anos quando Mandela foi libertado da prisão. Ouvi a notícia no jornal da TV, num quarto de hotel que dividia durante uma viagem com uma sul americana de uns 20 anos. Eu ainda era uma adolescente impressionável, que estava longe de casa já há alguns meses estudando interna num colégio. Lembro como se fosse hoje. Ela, loirinha de olhos azuis, aos berros dentro do quarto como se aquele homem, fosse um criminoso assassino. No dia-a-dia, era uma pessoa completamente normal, mas naquele momento eu a vi transtornada. Eu não tinha a dimensão de como a vida que ela conhecia mudaria a partir daquele momento. Isso foi em 1990. Um ano antes, o muro de Berlim caiu e o mundo mudou. Lendo o livro hoje, lembro que o muro de Berlim foi a minha primeira crônica. Escrevi um texto na minha agenda (ainda era assim que nos expressávamos naquela época – agendas cheias de colagem, clipes e textos pessoais). Tinha a plena convicção de que estava vendo a história acontecer diante dos meus olhos e esse sentimento me encantava. Queria fazer parte desse momento.

O MUNDO MUDOU, E EU TAMBÉM

Os anos de 1989 e 1990 marcaram o século XX. O mundo mudou: o político-econômico, com a queda do Muro; e o social, com a liberdade de Mandela e o começo do fim da política do apartheid. Enquanto isso, no meu mundinho, eu chegava aos 15 anos tão envolvida na grande aventura da vida, que não me dei conta de como estava mudando e dando os primeiros passos de quem é a Gabriela hoje.

Hoje aos 36 anos, em compensação, me vejo voltando à Gabriela de 15 anos. Lá atrás, deixei o conforto da minha casa e família para ir estudar numa escola interna no exterior. Coloquei a minha cara à tapa ao desconhecido. Fui com fome de conhecer o mundo, e muitos sonhos, ao mesmo tempo que expunha as minhas fraquezas, medos e imperfeições. Voltei marcada com histórias e experiências que me forjaram. Não vou dizer que voltei outra, mas com certeza não voltei a mesma. Hoje, faço o mesmo caminho. Embarco numa nova aventura – estou indo passar um ano em Nova Iorque. Um ano sabático. Mais do que estudar fotografia, estou indo com a mesma fome de conhecer o desconhecido, de abraçar o mundo. Quero sair da minha zona de conforto e descobrir o novo, em mim e no outro. Os sonhos continuam, claro! A diferença entre hoje e há vinte anos atrás, é que eu carrego toda uma bagagem de erros e acertos acumulada nesses anos. Lá atrás a dúvida era ‘quem eu sou?’, ‘como vou ficar longe de casa?’, ‘quais são as minhas fronteiras e limites? Como viver essa liberdade sem me perder?’ Hoje, essas questões já estão mais ou menos resolvidas – não dá para dizer que 100%, se não qual seria a graça em viver? – mas prioritariamente a questão que fala mais alto hoje é ‘vale a pena?’ Lá atrás, podia me dar ao luxo de perder tempo. O tempo era extravagante ao se mostrar à minha frente. Hoje, a extravagância dele é mais comedida… Já não quero me dar o luxo de desperdiçá-lo.

Como disse Chico Buarque – agora ele é avarento com o seu tempo. Eu quero fazer de todas as minhas 24 horas, horas importantes na minha vida. Quero que as minhas pequenas ações e atitudes, façam a diferença.

VIVER A LIBERDADE POR OPÇÃO

Fazer a diferença e viver a liberdade com suas dores e alegrias. Ser coerente com suas escolhas. Mandela traz à tona essas questões e recordações. Ele arcou com as consequências de suas escolhas e viveu livre, mesmo estando encarcerado. Alguns vivem presos, mesmo estando livres.

Como estou passando por essa fase de mudança, a cabeça a mil e a sensibilidade a flor da pele, as palavras do livro me tocaram profundamente. Obama faz a apresentação do homem Mandela, justamente, falando de suas imperfeições “Mandela nos lembra que não foi perfeito. Como todos nós, ele tem suas falhas. Mas é precisamente essa imperfeição que deve inspirar a todos nós.

Pois sendo honesto consigo mesmo, cada um de nós saberá que todos enfrentamos lutas maiores e menores, pessoais e políticas, para vencer o medo e a dúvida, para continuar trabalhando quando o resultado da luta for incerto, para perdoar aos outros e nos impor desafios.” Quem não consegue pensar em pelo menos uma situação que se sentiu trabalhando em vão? Ou que somos muitos fracos para o desafio à nossa frente? Quem não desanimou diante de uma luta de vitória incerta?

Acho que aí está o “X” da questão que divide os homens. Alguns se entregam na primeira dificuldade, outros fazem dessas mesmas dificuldades suas vitórias. Quando leio essas linhas sobre Mandela, penso no que o Dom Cipriano está sempre repetindo: somos filhos de Deus, e por sermos filhos de Deus, somos amados por Ele e vitoriosos para Sua glória. Como nós, cristãos, podemos desistir de lutar quando caímos? A queda faz parte do processo. Por que abrimos mão de sermos tudo aquilo que Deus planejou para nós? Por que insistimos em não ouvir a vontade de Deus e seguir por outro caminho? Mandela não é católico (teve uma formação batista quando menino), mas escolheu por livre arbítrio viver a sua vida segundo os preceitos de Deus – “…Mesmo diante da tentação de recorrer à vingança, ele via a necessidade de reconciliação e o triunfo do princípio sobre o mero poder.” Mandela está longe de ser um santo, mas é um homem real, que lutou pelas suas ideias, e fez a diferença no mundo. Nem todos podemos fazer tanta diferença quanto ele fez. É o designo de Deus, mas com certeza, podemos fazer a diferença na vida das pessoas à nossa volta.

Gosto da imagem do Mandela. Ela sempre me passou uma sensação de paz, de generosidade. Obama termina sua apresentação falando das conversas que tem com Mandela, depois que foi eleito presidente dos EUA – “Geralmente, nossas conversas são breves – ele está no crepúsculo dos anos, e eu estou a volta com a intensa programação que meu cargo exige. Mas nessas conversas sempre há momentos em que brilham a gentileza, a generosidade e a sabedoria desse homem. Esses momentos me recordam que, subjacente à história que foi construída, existe um ser humano que escolheu sobrepor a esperança ao medo – sobrepor o progresso às prisões do passado. E me recordam que, mesmo depois que se tornou uma lenda, conhecer o homem Nelson Mandela é respeitá-lo ainda mais.” O que posso acrescentar? Queria eu ser uma mosquinha para ouvir essas conversas. Um, sendo generoso com o que tem disponível – sabedoria e experiência que vem não só com os anos, mas com muita entrega no que faz e reflexão de si e do mundo a sua volta; outro, com humildade para saber que apesar de ser “o cara”, o todo poderoso de uma das maiores potências mundiais, precisa parar e ouvir essas palavras de sabedoria. Os cabelos brancos, fazem a diferença. Eles têm muito a acrescentar, apesar de uma parte da sociedade achar que não.

Temos o privilégio de termos como guia espiritual, Dom Cipriano, com seus cabelos brancos e longa estrada. É uma bênção, pela qual devemos todos os dias louvar a Deus e agradecer. Ele está toda semana conversando ao pé do nosso ouvido, através das suas homílias, do programa de rádio Vivências e de seus muitos textos e palestras em CDs e livros. Estamos fazendo como Obama: abrindo espaço nas nossas agendas tumultuadas e ouvindo? Prestando atenção?

Para mim, o Dom é muito especial. Não só pelos seus carismas, dons e sabedoria. Mas é uma comunhão de almas.

Sabe, quando uma pessoa te conhece melhor que você mesmo? Ano passado, quando ainda tinha muitas dúvidas se eu estava tomando a decisão certa em deixar a minha vida aqui em pausa, e passar um ano em NY, coloquei para ele tudo o que as pessoas me diziam para me convencer a ficar e abrir mão do meu sonho, porque este não se encaixava numa visão pré-determinada. Ele olhou me bem sério, e disse baixinho, com aquela voz típica dos monges: “Mas… você precisa ir, não? Você precisa se expandir …” Eu levei um susto! Confesso que achei que ele ia concordar com todos. Mas não! Ele sabia que eu precisava ir, assim como um pássaro precisa voar. Pode até viver sem voar, mas será que vale a pena? Dei uma risada sincera dizendo que queria ser assim como ele – ver as coisas claramente. Até então, o quadro ainda não era muito claro para mim. Agora, era a vez dele rir e dizer que eu precisava de pelo menos mais 50 anos para chegar perto. Está aí uma meta: se minha mãe quer ser como Madre Teresa de Calcutá, eu quero ser como o Dom daqui a 50 anos – sábia e profundamente generosa com o outro.

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