Assistir a peça “Simplesmente Eu”, um monólogo com a Beth Goulart revivendo Clarice Lispector − simplesmente de tirar o fôlego! Dizem que nós, mulheres, devemos o nosso entendimento de quem somos a três escritoras: a Jane Austen, que trouxe o mundo feminino à cena principal; a Simone de Beauvoir, que nos deu a igualdade; e a Clarice, que trouxe a tona o nosso eu interior com toda a sua ebulição.
Confesso que das três, eu tenho uma preferência descarada pela Jane Austen e seus personagens aparentemente simples, mas de uma complexidade sutil e britânica ironia. Clarice sempre foi uma turbilhão intrincado que nunca me aventurei muito a desvendar com medo de ser pega e não conseguir sair. Saí da peça querendo mergulhar por inteiro nesse mar de emoções e mistérios. Ela fala de amar ao outro ao mesmo tempo em que o repele; de contração e descontração, de angústia e alegria andando juntas de mãos dadas. É a vida como ela é, sem cortes. Como diz São João (Ap 3,16), pode ser quente ou pode ser frio. Só não pode ser morno.
Uma frase dela que sempre me chamou a atenção foi “Aprendi com a primavera a me deixar cortar e voltar sempre inteira”. Como é difícil se deixar cortar! E voltar inteira? Mas como as flores, se não nos deixarmos cortar, não estaremos exuberantes na próxima primavera. Clarice não escreveu nada diferente do que Jesus já não tivesse dito quando falou em o homem ser podado, mas disse com uma poesia só dela. Acho que o que me encanta nos seus textos é a entrega por inteiro, sem medo dos cortes e arranhões que por ventura acontecerão no meio do caminho. Afinal, eles são as testemunhas de que estamos vivos. Sim, como dito na peça, a raiva e a angústia a fazem se sentir viva, assim como a alegria e o amor.
Voltar inteira é a parte mais difícil da equação. Ser cortada, ainda “vá lá”. É mais fácil aceitar que não temos controle além de nós mesmos. Mas voltar por inteiro … sem carregar o peso do que nos foi amputado… isso para mim, muitas vezes, ainda é um mistério. Gosto da ideia de ser inteira, assim como uma moeda com dois lados – cara e coroa. A alegria de viver e a angústia de viver. Ser e não ser. Fé e revolta. Porque temos que escolher um só lado? Direita ou esquerda. Por que insistimos em tentar viver o comercial de margarina com todos sorrindo logo pela manhã? E se acordamos de mau humor?
Ser inteira. É difícil. Li há pouco um livro que o título é tudo de bom: “Quem sou? E se sou, quantos sou?” Como consigo ser inteira, se sou tantas? Precisaria de clones para poder ser cada eu por inteiro. Ou um Fernando Pessoa de saias. Mas aí, talvez, não fosse eu por inteiro, uma vez que sou esse mix de eus, com suas conquistas, falhas, quedas e voltas por cima. Olha aí de novo que surge, a volta. Mas não é qualquer volta. É voltar por inteiro. Ainda não descobri a fórmula ou se é vendido no supermercado, mas por enquanto estou adotando o velho método científico de tentativa e erro. Como o próprio nome diz, algumas vezes acerto, outras erro feio… mas continuo tentando, porque afinal o mundo é redondo para nos permitir girar.
Quando me sinto afogada em algum tsunami e me deparo com uma Clarice Lispector, agradeço a Deus porque não estou nadando sozinha. Estou viva e não estou presa numa caixa ou personagem que me colocaram. Sou a escritora da minha própria história com os meus eus de personagens, guerreando entre si ou se ajudando. O importante, como diria o rei Roberto: “é que emoções eu vivi”.