Hoje mesmo, vi de perto o exemplo da força feminina. Pudera que Deus escolheu a mulher, como a sua representante na Terra para dar luz à vida. Os homens são fundamentais para gerar e dividir a beleza da vida, mas é a mulher que sustenta o peso do ar com dignidade quando este está insuportável.
PROCURANDO RESPOSTAS PELA FÉ
Estava pensando em fazer essa crônica sobre os desafios da maturidade. O equilíbrio entre a leveza do otimismo da juventude e o ceticismo que ganhamos com o passar dos anos. Seria uma continuação do mes anterior em que falei que depende de cada um de nós acreditarmos e fazermos um mundo melhor. Mas hoje fui atropelada por um desses acontecimentos que nos fazem parar e olhar nossos medos de frente. Uma amiga perdeu a filha de três anos durante a madrugada. A filha sofria de uma rara doença degenerativa, e a família já sabia que não poderia usufruir da sua presença durante muitos anos. Seriam no máximo 5 ou 6 anos, acompanhados de muito sofrimento para todos os envolvidos: pais, irmão, avós e amigos. Essa sentença foi dada logo depois do primeiro aniversário de vida.
Durante esses 2 anos, pude ver uma família lutar pela sua filha, buscar todos os recursos possíveis: procurar respostas na sua fé, o judaísmo por parte de mãe; na terapia e em diferentes médicos. Quando um caía, o outro o ajudava a levantar, e assim seguiram em frente, aproveitando cada momento que tiveram com a filha. Viagens em família, festinhas infantis, shopping, tudo o que uma criança em condições normais gostaria de fazer. Os desafios foram muitos: culpa, desgaste emocional e financeiro, questionamentos, cansaço… Durante esse período sempre conseguiram, de uma maneira ou de outra, inserir a filha em todos os momentos da família e entre os amigos. Essa parte da história terminou hoje, no Cemitério Parque Israelita, numa cerimônia pequena, cheia de simbolismos e emoção.
O DESRESPEITO PELOS MORTOS
Queria falar aqui sobre esse ritual: a despedida final das pessoas que amamos. Nunca tinha ido a um enterro judaico, e fiquei sensibilizada com a atenção dada à cerimônia. Para nós, católicos no Rio de Janeiro, há praticamente duas opções de cemitérios: São João Batista, e Ordem Terceira do Carmo. Ambos, de crueldade atroz com os familiares que velam seus mortos. Lugares insalubres, coveiros sem respeito algum pela dor alheia, e aqueles que deveriam levar a Palavra de consolo, o fazem como máquinas, como uma linha de produção em massa. Todas essas pessoas esquecem-se que ali, naquele corpo sem vida, já viveu um sopro de Deus. Uma criatura divina que veio viver entre nós com uma missão. Que foi um filho, um amigo, um cônjuge e, quem sabe, também não gerou outras vidas. Que brincou, venceu e caiu diversas vezes, mas com certeza foi amado pelo menos uma vez na vida … nem que tenha sido só pela própria mãe. Acho que a grande população ‘católica’, ou pelo menos que assim se apresenta, tem grande responsabilidade na frieza desse ritual. As pessoas vão aos velórios como se fossem a um compromisso social. E assim alimentam esse círculo vicioso de desrespeito. Óbvio, que isso não é regra, mas é a grande maioria dos casos.
Não sei se por hoje ter sido uma criança de 3 anos e, todos estávamos em choque, apesar de sabermos que era esperado, ou pelo próprio ritual e beleza do local, tudo ganhou uma dimensão maior.
“O ESPÍRITO DO HOMEM É A VELA DO SENHOR”
Para começar, o cemitério é um grande jardim de grama verde. As lápides são pedras de mármore preto no chão.
Olhando-se de longe vê-se apenas o gramado verde, que nos remete à vida e não à morte. Ao começo da cerimônia propriamente dita, foram acesas pela avó e tia maternas, três velas que estavam localizadas perto do caixão, coberto por um pano preto com a estrela de Davi. A cada vela diziam: “O espírito do homem é a vela do Senhor” (Provérbios 20,27). A ideia é que a luz das boas ações praticadas pelo falecido ao longo da vida o acompanhará ao repouso eterno. Logo depois, o Rabino fez um rasgo no lado esquerdo da roupa dos pais, e estes aumentaram um pouco mais o rasgo em sinal de luto, ao mesmo tempo em que pronunciaram “Baruch Dayan emet” – “Bendito seja o verdadeiro Juiz”. Esse é um antigo costume dos judeus “E rasgou Jacob suas vestes … e enlutou-se por seu filho (José) muitos dias.”(Gn 37,34).
Dando continuidade à cerimônia, o Rabino disse algumas palavras, seguido de um familiar. Em resumo, que nós viemos a Terra por duas razões: para acertar contas de nossos antepassados e para cumprir uma missão. Para alguns é necessário vários anos; outros, com apenas três anos já completam a sua missão. Que a filha que estavam se despedindo naquele dia, estaria sempre com eles, derramando bênçãos sobre a família e futuras gerações. Como ela era uma bênção, e ela ficará triste quando coisas ruins acontecerem àqueles que ama, Deus derramará suas bênçãos sobre eles para que ela não fique triste. Como Dom Cipriano diz – no mundo espiritual estamos eternamente ligados e intercedendo junto ao Pai pelos que aqui ficaram. Para surpresa geral a própria mãe, grávida de 4 meses de gêmeas, pediu a palavra. Apoiando-se na barriga já saliente, confirmou que aceitava a vontade de Deus, e que a filha, apesar do pouco tempo e da limitação física deixava uma marca profunda na vida de todos que a conheceram.
Contou que quando recebeu a notícia da doença, acreditou que nunca mais seria feliz, mas aos poucos foi reaprendendo a ser feliz. Tinha na lembrança momentos maravilhosos que tinha passado na companhia da filha e tinha uma luz dentro de casa que era seu filho mais velho. Queria que todos ali se lembrassem da filha, como ela deu a notícia ao filho de 5 anos: a irmãzinha agora tinha ido dormir para sempre. Agora ela estava num lugar onde ela podia correr, sorrir, falar e brincar como eles tantas vezes a imaginaram, mas que ela não podia fazer aqui na Terra.
Ao seguirmos o cortejo para o local do sepultamento, na terra, como manda a tradição judaica, o Rabino começa a jogar terra sobre o caixão três vezes recitando “Porque és pó, e ao pó retornará”(Gn 3,19). Em seguida convidou a todos a fazerem o mesmo, começando pela família. O ritual do sepultamento acaba ao fechar-se a cova, com a ajuda dos coveiros, mas o ritual de despedida continua por mais 4 dias. Todos os dias, uma oração será feita na sinagoga pela manhã e à noite na casa da família. Assim, os familiares terão sempre companhia para chorar as suas dores e poderão viver o luto. Ao passar esse tempo, terão força para reconstruir a felicidade, pouco a pouco, dia a dia.
Algumas amigas acharam um excesso esse ritual diário, durante quatro dias. Eu, pelo contrário, sempre gostei dessa ideia de chorar e sofrer tudo que temos para chorar e sofrer, para, aí sim, liberarmos espaço em nosso coração para o renascer da vida. Nada adianta se plantarmos numa terra seca. É preciso que a terra seja remexida e adubada para que as flores floresçam e as borboletas e pássaros passeiem pelo jardim.
No mundo atual, temos abandonado os ritos de passagem, mas nos esquecemos de que eles nos ajudam a passar de fase, assim como nos jogos. Desde que a humanidade se entende por sociedade, passamos por ritos que marcam a nossa vida. As sociedades primitivas tinham o ritual da vida adulta, com provas de resistência para os meninos tornarem-se homens, e as meninas celebravam a primeira menstruação, como símbolo de que deixavam para trás as brincadeiras infantis para se tornarem mulheres e mães.
Na Igreja temos o Batismo – nossa entrada no coração de Cristo – , a Primeira Comunhão, a Crisma, o Casamento ou Sacerdócio, a Unção dos Enfermos – preparação do nosso espírito para a entrada no paraíso – e, por fim, os ritos finais, quando nosso espírito não mais está em nosso corpo, além das missas, Quaresma e muitos outros.
Muitos alegam que tudo isso é bobagem. Não é preciso casar de papel passado, basta morar junto. Não é preciso viver o luto por uma perda. O que passou, passou. É preciso viver o futuro e deixar para trás o passado… Concordo que é preciso viver e deixar o passado no seu lugar – no passado. Mas como viver o presente, se não nos damos tempo para digerir e absorver as mudanças? Cada etapa dos sacramentos, é uma mudança de vida, o surgimento de mais uma camada na nossa identidade. Sou a favor dos ritos, dos mais banais – usar salto alto depois dos 15 anos –, aos essenciais – o luto da perda. Os pequenos gestos, o corte na roupa no velório judaico, o jejum na quaresma, nos fazem viver o momento presente de corpo e alma. Por isso gostei da cerimônia, hoje.
Repleta de simbolismos que ajudam a família a viver o luto, a dor, mas sempre com a esperança de que essa dor, por mais dilacerante que seja, vai embora, assim que a colocarmos para fora.
Quando tudo terminou, era como se uma pedra pesasse sobre mim. As perguntas no velório e durante esses dois anos sempre foram muitas, mas resume-se a – por que? Por que com essa família? Por que uma criança que nunca fez mal algum, é obrigada a passar por isso? Por que? Por que? Podemos tentar começar pelas palavras do rabino – cada um vem com uma missão dada por Deus, e Ele sabe o que é o melhor. Para Deus, o tempo, pela noção que temos, é outro. Não tem passado, presente ou futuro. É tudo junto e misturado. Um infinito conhecido em sua totalidade por Ele. Paradoxo? Para nós, criaturas, sim. Para o Criador, não. Podemos tentar ver pelo lado da evangelização: quantas pessoas amigas não se sensibilizaram e foram tocadas pela fé e esperança que a família demostrou na vida durante esse tempo todo? Podemos ver também como o ciclo da vida: término de uma vida e começo de outras – as gêmeas que estão a caminho. Mas acho que o principal é fé. Fé em Deus. Fé que Ele não coloca nas nossas costas, peso maior do que podemos aguentar. Fé que cada um tem seu papel a cumprir. Fé que cada um é especial e imprescindível. Fé que Ele não nos abandona nunca, nem mesmo quando duvidamos e questionamos a sua existência. Fé de que certos acontecimentos da vida não são para serem questionados e sim vividos em toda a sua complexidade. Fé que Ele nos quer felizes. Fé que depende de nós construirmos a nossa felicidade. Fé.